sexta-feira, 3 de agosto de 2012

“ESTÓRIAS (PARA ADULTOS) INFANTIS”, leituras e devaneios


Antes de tudo uma breve explicação sobre a minha longa ausência, estive bastante ocupado entre projectos pessoais e a conclusão do mestrado, como disse iria ser breve.

Tendo lidado com a questão do meu súbito desaparecimento (e retorno) da vida de Blogista, passo a apresentar um texto com o qual me deparei durante a minha longa e árdua pesquisa de compilação de material para a dissertação de mestrado. É o texto da apresentação oral feita por Vera Maria da Silva, no lançamento do livro “ESTÓRIAS (PARA ADULTOS) INFANTIS” de Xico Braga, fazendo uma reflexão interessante sobre a distinção do erótico em relação ao pornográfico. Espero que apreciem.



APRESENTAÇÃO DE “ESTÓRIAS (PARA ADULTOS) INFANTIS” de XICO BRAGA
E UMA PEQUENA REFLEXÃO SOBRE O ERÓTICO.

Estórias (para adultos) infantis” tem um título óptimo, daqueles que fazem cócegas ao leitor. Mas são tão só contos, mais ou menos extensos e bem-humorados, onde sendo incontornável a presença de apontamentos eróticos estes apresentam-se com grande naturalidade e não se constituem como o elemento exclusivo de cada história. Ainda que não houvesse qualquer explicitação sexual elas viveriam por si mesmas.

O desejo e o erotismo que trespassa estes contos têm um enquadramento expresso na narrativa, ao contrário do que sucede noutros registos que tanto inundam e imperializam páginas e ecrãs, limitando-se e esgotando-nos com a transpiração de um sexo gratuito, sem qualquer sustentação narrativa e arruinando qualquer oportunidade de ficção. As personagens, diversas, independentemente de clivagens de géneros, são pessoas comuns, banais e relacionam-se em ambientes e contextos imaginativos ou surpreendentes. No essencial elas estão lá para protagonizar e contarem-nos uma história. Para elas, aparentemente, o desejo, o sexo, o prazer, são bens relativamente acessíveis; de tal forma que até podemos suspeitar se, naqueles contos, elas não estão na eminência de uma deflação destes “bens”. Mas o medo, por associação ao fenómeno económico, não é motivo para nos afastar destas Estórias de Xico Braga, e de outras, onde a componente erótica é apenas uma parte do que está lá para ler. Porque o que o leitor comum procura num livro é que este lhe conte uma história e isso é o que estes contos lhe dão.

Estórias (para adultos) infantis” são indulgentes, passam-se sem sentimentos de culpa, sem angústias, numa espécie de terra do nunca (a que, por natureza, é o território privilegiado da ficção), onde a SIDA e outras sombras não têm lugar. Mas esta imagética não a construímos nós e não a transportamos, na pele, desde a infância? Então, e cito do prefácio, “se calhar, estas histórias, são mesmo para adultos infantis, porque outros, no fundo, não há, [porque] gente adulta, verdadeiramente a sério, pode lá embarcar na suspensão da realidade que, a cada passo, irrompe na escrita e na arte!

Então o que nos leva, os que somos grandes leitores, a não crescer, a dispor-nos, por horas, a vivermos um espaço-tempo imune a leis da física e da razão? A validarmos, em todo aquele cenário ilusionista, personagens e situações como se construções imaginárias não fossem? O que nos vincula, desde a infância, a sermos devoradores de histórias, de romances, de contos, de poemas? Porque é que estamos tão irremediavelmente seduzidos pela leitura, tão viciadamente entregues a ela, sendo que, como escrevi há dias a um amigo, um vício é um imperativo a que uma pessoa se entrega compulsivamente, senão… nem sequer é um vício? Porque nos tornámos uns infortunados dependentes da “virtude” de ler? Ocorre-me que possa ser para obter uma sublimação de uma necessidade instintiva de gratificação gradual e progressiva de evasão. De sermos uns “agarrados” a trips que arruínam a racionalidade e nos remetem para a tribo do “Povo da noite”, como o poeta galego Manuel Rivas se refere àqueles leitores que, madrugadas dentro, por detrás das suas janelas iluminadas devoram livros acendendo a noite.

E nestas longas e eternas vigílias também lemos livros onde Eros irrompe ou apenas paira. E não pode ser de outra forma; Eros é uma das presenças incontornáveis em toda a história da ficção cuja génese expressiva se encontra já em registos plásticos pré-históricos emergindo, depois, em textos das culturas pré-clássicas mediterrânicas e de outras partes do mundo. Mas a sua ancestralidade não reduz a evidência de a literatura erótica ser, desde sempre, marginal e de, ainda hoje, levantar a constatação expressa por João Silvério Trevisan: “como falar dela sem cair no reducionismo que tende a situá-la dentro do código já fechado de um género? Afinal, este tratamento, responde muito mais às necessidades de um mercado editorial e a uma política de domesticação da sexualidade, que a torna digerível e termina por suprimir as características específicas de cada obra, descontextualizando-a do momento histórico da sua produção enquanto literatura, assim como oculta os códigos de leitura que tornam possível a sua produção”.

Ainda que não seja previsível que “Estórias (para adultos) infantis” se transforme num “clássico”, não deixam de ser contos que têm por finalidade ser narrativas lúdicas; mas também uma oportunidade para reflectirmos se onde há asfixia que ainda persiste não é na abordagem das questões do sexo. E porque perdura este “interdito” tão persistentemente? Talvez porque o desejo e a sexualidade ainda permaneçam como um dos poucos e últimos territórios fauves do ser humano. E podem ser relativamente percepcionados como potenciadores de rebeldia e de desordem.

A pulsão erótica, tal como a festa popular quando conserva a sua dimensão antropológica, sempre foi considerada uma força catalisadora de transgressão, inversão de regras e normas; um excesso, um meio de subversão e risco de ousar arriscar a libertação. Estes receios alastraram à escrita, à leitura, às artes, porque são quer produtos do pensamento que tende a ser autónomo, capaz de reflexão, juízo crítico e expressão, quer de uma capacidade de criar e materializar emoções que emergem de profundidades não controláveis. “Vícios” destes não se ordenam apenas por supra ou auto-regulação; por isso a censura social e oficial sempre foi tão grata quer a regimes, quer a pensamentos singulares totalitários. O potencial do pensar, do criar, do agir, arrisca subverter a normalização, o institucionalizado, estes bem mais fáceis de controlar social e politicamente do que o que seja diverso, do que seja imprevisível.

Pulsões e compulsões brotam do obscuro e não são facilmente geridas e enquadráveis. Se perspectivarmos esta questão, quer de um ponto de vista histórico quer politico, um desejo libertado perturba modelos e padrões construídos num referencial maniqueísta e simplificador de normalidade social, seja no que se refere ao sexo, à moral, aos gostos privados ou a qualquer outra coisa. E Eros, quando tem por expressão o sexo, é um caso sério e significativo. Por exemplo, “Devassos no paraíso”, de João Silvério Trevisan, relata o desespero da inquisição com o facto de o número de delitos sexuais ser enorme na Visitação de 1591 à Bahia (que, na altura, talvez nem 5.000 habitantes tivesse). De entre 120 confissões detectadas de pecados de inobservâncias de dogma e de heresia, terão sido registados 45 casos de transgressões de ordem sexual, sendo que, a seguir à blasfémia, a sodomia (que incluía sexo anal e oral hetero ou homossexual) era o crime mais corrente. Como era revoltante constar que, no Brasil, “cristãos viviam como gentios vida escandalosa” e tão desencaminhados para o pecado pelo mau exemplo dos indígenas e da sua cultura sexual libertária pois até “a medicina indígena era exercida através do relacionamento sexual do pajé [curandeiro] com os pacientes”. E o jesuíta José de Anchieta, constatava surpreso, provavelmente por via da poliandria e poligamia generalizadas, “nunca ter ouvido falar de um índio que tivesse matado sua mulher por causa de adultério ou ciúme”. Como se infra equinoxialem nihil peccari. Parecia de facto, aos olhos ocidentais, que não havia pecado abaixo do equador. A solução: a eliminação, mutilação e marginalização dos transgressores da ordem social, no que, obviamente, também se incluem todos os que pensam, escrevem e lêem livremente ou que não se comportem de acordo com as normas da ordem social, cultural e mental vigente. Todavia a “pessoas de maior qualidade” podia o governador da Bahia absolver da pena de morte e redimi-la a multa ou degredo. Na Europa, também os escritos e estilo de vida do Marquês de Sade eram um daqueles casos de radicalidade obscura e condutas de arrepiante abismo que não davam sequer espaço nem para oblíquos devaneios especulativos sobre a indispensabilidade do vício para a santificação da virtude, nem para categorizações do tipo: É uma obra erótica? É uma obra pornográfica? Mas será que hoje dão?

Se nos basearmos no filósofo Herbert Marcuse (“Eros e Civilização”), talvez possamos encontrar uma linha que nos faculte orientação operativa para uma distinção entre o erótico e o pornográfico. Erótico é o que “distingue o prazer da cega satisfação de carências e necessidades, é a recusa do instinto em esgotar-se na satisfação imediata, é a sua capacidade para construir e usar barreiras para a intensificação do acto de plena realizaçãoEmbora essa recusa instintiva tenha feito o trabalho de dominação, também pode servir à função oposta: erotizar as relações não-libidinais

Mas talvez ao que alguns mais se rendam e emocionem face ao erótico seja às suas mundividências; ou ao que ele permite desenvolver nos singulares universos contrafactuais da ficção, sedentos que estamos de singularidade, de extraordinário, ou de uma qualquer transcendência nas nossas vidas tão regidas pelos signos da unidimensionalidade, da vulgaridade de quotidianos racionalizados e ordenados pois, como Eros, vimos de fonte obscura, e partes de nós, para nós mesmos, conservam um limite de opacidade. Para outros, os que o estigmatizam, talvez porque tudo o que possa ter uma conotação transgressora seja para eles desequilibrador, caótico, destrutivo, assustador e percepcionem social e culturalmente Eros no alinhamento astral da ruptura, e citando Walter Benjamin,  no “ desejo consciente de quebrar a continuidade da história [que] pertence às classes revolucionárias no momento da acção”. Para estes, o que impera é o tranquilizante fascínio pelo desejo de ser socialmente “insider”, de, no mínimo, se ser classe média. Talvez daí a razão de tanta empatia pela ordenação de uma pulsão de desordem. Então, como deixar de não olhar, com persistente repulsa ou reprovação, a inscrição alternativa num prostíbulo de Pompeia: “Aqui reina a felicidade”?

Gostaria, para terminar, de referir as ilustrações de Isabel Teixeira de Sousa para estas “Histórias (para adultos) infantis”. E o que vemos? Ilustrações, predominantemente figurativas, invadidas por composições que se deixam envolver por grandes manchas planas de cor, cores fortes que enquadram elementos centrais ou fragmentos que contrastam com a delicadeza de pormenores dos desenhos, colagens digitais e laivos de aguarela. Numa leveza difusa, ou com afirmativa imponência, delas emergem corpos masculinos e femininos ou tão só apontamentos erógenos. Mas não são todos os corpos, e almas que os habitam, apelo e objecto de um qualquer desejo na vasta paleta de sentimentos e relações? “Estórias (para adultos) infantis” é um livro que é para ler mas também para ver.

Como receio não ter de todo sido tão estimulante quanto poderiam esperar para vos falar destas histórias e do tema, vou deixar esse papel a Xico Braga, sem dúvida melhor credenciado para responder às vossas expectativas.



Vera Silva

Lisboa, 25 de Setembro de 2009

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O Príncipe sem coração, explicações e devaneios

Para variar temos aqui outro projecto do mestrado, desta vez da cadeira de serigrafia, uma série de seis ilustrações sobre as peripécias do Príncipe sem coração. A personagem e situações fazem parte de uma história maior, sobre um príncipe que decide que ter coração dá mais chatices que vantagens, logo a a escolha mais lógica é livrar-se dele por decreto real.
Um conto infantil cuja ideia inicial era demonstrar os problemas práticos que poderiam surgir na ausência de um coração, ao invés de focar nos problemas emocionais, apesar de a personagem não ter sido inicialmente criada com a serigrafia em mente, a utilização de manchas fortes e cores planas mais do que justificaram esse processo.

Para que nunca experimentou serigrafia recomendo desde já, nem que seja para terem uma vaga (e dolorosa) noção do trabalho e esforço necessário para a execução de uma impressão decente. Consegue ser um processo desanimador e moroso, mas garanto que quando uma impressão sai bem, todas aquelas horas a respirar diluente e a limpar redes quase que se justificam. Tenho que agradecer particularmente á nossa incansável professora Joana Paradinha, se não fosse pela sua insistência e sentido de humor peculiar, ainda estaria a imprimir peças de um gosto e qualidade questionável, e a reclamar enquanto o fazia.

O Príncipe sem coração 06

O Príncipe sem coração 05

O Príncipe sem coração 04

O Príncipe sem coração 03

O Príncipe sem coração 02